Síndrome de ativação macrofágica em paciente com lúpus eritematoso sistêmico - relato de caso


Marco Antonio Cuellar ArnezI; Mario Newton Leitão de AzevedoII; Blanca Elena Rios Gomes BicaIII

IPós-Graduado em Reumatologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ; Mestrando em Clínica Médica, Serviço de Reumatologia, UFRJ
IIDoutor em Clínica Médica, UFRJ; Professor-Associado de Reumatologia, Faculdade de Medicina, UFRJ
IIIProfessora-Adjunta de Reumatologia, Faculdade de Medicina, UFRJ; Chefe do Serviço de Reumatologia, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho - HUCFF-UFRJ

Correspondência para



RESUMO
A síndrome hemofagocítica, ou síndrome de ativação macrofágica (SAM), é uma complicação das doenças inflamatórias sistêmicas, podendo também estar relacionada a neoplasias, imunodeficiências e a uma variedade de infecções por agentes virais, bacterianos e fúngicos. Caracteriza-se pela excessiva ativação dos macrófagos e histiócitos com intensa hemofagocitose na medula óssea e no sistema retículo-endotelial, acarretando a fagocitose de eritrócitos, leucócitos, plaquetas e de seus precursores. As manifestações clínicas apresentam-se como febre, hepatoesplenomegalia, linfadenomegalia, envolvimento neurológico, graus variáveis de citopenias, hiperferritinemia, distúrbio hepático, coagulação intravascular e falência de múltiplos órgãos. Relatamos um caso raro de SAM em homem com diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico que teve recorrência dessa complicação após dois anos, e que evoluiu com melhora após tratamento com pulsoterapia com metilprednisolona e ciclofosfamida.
Palavras-chave: síndrome de ativação macrofágica, linfo-histiocitose hemofagocítica, lúpus eritematoso sistêmico.



INTRODUÇÃO
A síndrome de ativação macrofágica (SAM), também conhecida como linfo-histiocitose hemofagocítica, é uma condição clínico-patológica rara, potencialmente fatal, caracterizada pela produção maciça de citocinas pró-inflamatórias que determinam as manifestações clínicas e que resulta frequentemente em falência de múltiplos órgãos. O quadro clínico manifesta-se por febre, hepatoesplenomegalia, pancitopenia, linfadenopatia, envolvimento neurológico e coagulopatia de consumo.1,2 Pode associar-se a infecções sistêmicas, imunodeficiências, doenças linfoproliferativas e autoimunes. Entre as doenças inflamatórias, a artrite idiopática juvenil de início sistêmico é a mais frequentemente descrita.3-5 Sua apresentação no lúpus eritematoso sistêmico (LES) juvenil6 e na dermatomiosite juvenil7 é esporádica.
Descrevemos o caso de um paciente com diagnóstico de LES que apresentou dois episódios de SAM. O quadro foi controlado com reconhecimento da complicação e tratamento adequado com corticoterapia, pulsos de ciclofosfamida (CFM) e ciclosporina.

RELATO DE CASO
Homem de 49 anos, apresentou poliartralgia, emagrecimento de 15 kg em um ano, febre vespertina, sudorese noturna, fator antinuclear positivo, padrão pontilhado (1:200), anticorpos anti-RNP (1:500), anti-Ro e anti-Sm positivos, hipergamaglobulinemia policlonal, anemia hemolítica e proteinúria de 1 g/24 horas. Foi diagnosticado com LES e tratado com pulsoterapia com metilprednisolona (três pulsos) e CFM (12 pulsos mensais), seguidos de prednisona e azatioprina, obtendo controle da doença.
Após quatro anos o paciente retornou referindo febre diária (39ºC-40ºC) há um mês, fraqueza generalizada, dorsalgia, sudorese e discreta perda ponderal, quando foi reinternado para investigação. Exames laboratoriais evidenciaram aumento das transaminases, leucopenia, trombocitopenia, Coombs direto positivo, velocidade de hemossedimentação elevada, hiperferritinemia, além de proteinúria de 1240 mg em urina de 24 horas e hemocultura e urinocultura negativas (Tabela 1).

O ecocardiograma revelou disfunção diastólica grau I, com leve aumento das câmeras direitas com incompetência tricúspide leve e pressão estimada da artéria pulmonar de 37 mmHg. Evidenciou-se hepatomegalia. O exame de sangue periférico mostrou anisopoiquilocitose, hemácias em lágrima, acantócitos, neutrófilos com anomalia de Pelger-Huet e plaquetopenia leve. O aspirado de medula óssea revelou hipoplasia eritroide, parada da maturação com discreta anemia diseritropoiética, presença de histiócitos fagocitando células de linhagem eritroide e mieloide, setor mieloide hipogranular e megacariócitos normais. O paciente melhorou após tratamento com pulsoterapia com metilprednisolona.
Após dois anos, o paciente retornou com piora do estado geral, febre de até 40ºC e dispneia aos pequenos esforços, com início há 18 dias. Foi internado e iniciado antibioticoterapia, evoluindo com desorientação. Realizou-se tomografi a computadorizada de crânio, sem alteração. O exame do líquido cefalorraquidiano (LCR) mostrou 101 cel/m3, com 94% de mononucleares, 100 mg/dL de proteínas e 22 mg/dL de glicose. Iniciou-se tratamento com aciclovir.
O paciente apresentava aumento de enzimas hepáticas, pancitopenia, anemia moderada e hiperferritinemia. As culturas do LCR foram negativas para fungos, bacilos álcool-ácido resistentes, bactérias, micobactérias e citomegalovírus. O paciente evoluiu com edema agudo de pulmão e insuficiência respiratória aguda, procedendo-se intubação orotraqueal e ventilação mecânica. Foi iniciado pulso de metilprednisolona por três dias sem grande melhora. Introduziu-se ciclosporina, com controle gradual do quadro. O paciente teve alta hospitalar com baixas doses de corticoide e ciclosporina.

DISCUSSÃO
Descrevemos um caso raro de paciente com LES que desenvolveu um episódio comprovado de SAM com recorrência dessa complicação após dois anos. Os fatores desencadeantes são vários, e os processos infecciosos são um importante deflagrador dessa complicação.8,9
As manifestações clínicas são explicadas pela hiperprodução de citocinas pró-inflamatórias (interleucina 1, fator de necrose tumoral, interferon gama, dentre outras), responsáveis por essa grave complicação.10-12
A dificuldade diagnóstica deve-se ao fato de os sintomas e sinais serem comuns à atividade da doença, além dos quadros infecciosos associados.13,14 A presença de hiperferritinemia, sinal muito sugestivo de ativação macrofágica segundo diversos autores,15 associada ao aspirado de medula óssea, definiu o quadro que caracteriza a SAM. O paciente apresentou os critérios diagnósticos para síndrome hemofagocítica propostos pelaHistiocyte Society16 e por Imashuku,17 Tsuda18 e Ishikura,caracterizados pela presença de febre, citopenia, hiperferritinemia, aumento do lactato desidrogenase e hemofagocitose proeminente no aspirado de medula óssea. Embora o próprio LES possa desencadear essa grave complicação,19 não podemos descartar a possibilidade de um quadro infeccioso ter sido o agente desencadeante em nosso paciente no segundo episódio, já que as características do LCR eram compatíveis com infecção viral. O quadro de febre, pancitopenia e hiperferritinemia também sugeria a possibilidade de recorrência de SAM, que melhorou com imunossupressão, porém sem confirmação por falta de exames que caracterizam o quadro como estudo de sangue periférico e mielograma. Em muitos casos não se consegue determinar a causa desencadeante da hemofagocitose.
A boa resposta ao tratamento com pulsoterapia de metilprednisolona e ciclofosfamida seguida do tratamento com ciclosporina já está descrita na literatura, com resultados satisfatórios em diversos relatos de casos.8
A dificuldade de descartar infecção associada retarda o início da terapia imunossupressora, crucial para o tratamento e a boa evolução dessa intercorrência. Deve-se suspeitar de hemofagocitose em pacientes com doenças inflamatórias sistêmicas como o LES e que apresentem manifestações clínicas e/ou laboratoriais sugestivas da SAM.

REFERÊNCIAS
1. Ravelli A. Macrophage activation syndrome. Curr Opin Rheumatol 2002;14(5):548-52.         [ Links ]
2. Romanou V, Hatzinikolaou P, Mavragani KI, Meletis J, Vaiopoulos G. Lupus erythematosus complicated by hemophagocytic syndrome. J Clin Rheumatol 2006;12(6):301-3.         [ Links ]
3. Sawhney S, Woo P, Murray KJ. Macrophage activation syndrome: a potentially fatal complication of rheumatic disorders. Arch Dis Child 2001;85(5):421-6.         [ Links ]
4. Grom AA. Natural killer cell dysfunction: a common pathway in systemic-onset juvenile rheumatoid arthritis, macrophage activation syndrome, and hemophagocytic lymphohistiocytosis? Arthritis Rheum 2004;50(3):689-98.         [ Links ]
5. Avcin T, Tse SM, Schneider R, Ngan B, Silverman ED. Macrophage activation syndrome as the presenting manifestation of rheumatic diseases in childhood. J Pediatr 2006;148(5):683-6.         [ Links ]
6. Javier RM, Sibilia J, Offner C, Albert A, Kuntz JL. Macrophage activation in lupus. Rev Rheum Ed Fr 1993;60(11):831-5.         [ Links ]
7. Kobayashi I, Yamada M, Kawamura N, Kobayashi R, Okano M, Kobayashi K. Platelet-specific hemophagocytosis in a patient with juvenile dermatomyositis. Acta Paediatr 2000;89(5):617-9.         [ Links ]
8. Kumakura S, Ishikura H, Kondo M, Murakawa Y, Masuda J, Kobayashi S. Autoimmune-associated hemophagocytic syndrome. Mod Rheumatol 2004;14(3):205-15.         [ Links ]
9. Janka GE. Hemophagocytic syndromes. Blood Rev 2007;21(5):245-53.         [ Links ]
10. Silva CA, Silva CH, Robazzi TC, Lotito AP, Mendroni Junior A, Jacob CM et al. Síndrome de ativação macrofágica associada com artrite idiopática juvenil sistêmica. J Pediatr (Rio J) 2004;80(6):517-22.         [ Links ]
11. Rosa DJ, Nogueira CM, Bonfante HL, Machado LG, Rodrigues DO, Fernandes GC et al. Síndrome de ativação macrofágica após o uso de Leflunomida em paciente com doença de Still do adulto. Relato de caso. Rev Bras Reumatol 2007;47(3):219-22.         [ Links ]
12. Behrens EM. Macrophage activation syndrome in rheumatic disease: what is the role of the antigen presenting cell? Autoimmun Rev 2008;7(4):305-8.         [ Links ]
13. Tanaka Y, Seo R, Nagai Y, Mori M, Togami K, Fujita H et al. Systemic lupus erythematosus complicated by cytomegalovirusinduced hemophagocytic syndrome and pneumonia. Nihon Rinsho Meneki Gakkai Kaishi 2008;31(1):71-5.         [ Links ]
14. Arceci RJ. When T cells and macrophages do not talk: the hemophagocytic syndromes. Curr Opin Hematol 2008;15(4):359-67.         [ Links ]
15. Favara BE, Feller AC, Pauli M, Jaffe ES, Weiss LM, Arico M et al. Contemporary classification of histiocytic disorders. The WHO Committee On Histiocytic/Reticulum Cell Proliferations. Reclassification Working Group of the Histiocyte Society. Med Pediatric Oncol 1997;29(3):157-66.         [ Links ]
16. Henter JI, Elinder G, Ost A. Diagnostic guidelines for hemofaphagocytic lymphohistiocytosis. The FHL Study Group of the Histiocyte Society. Semin Oncol 1991;18(1):29-33.         [ Links ]
17. Imashuku S. Differential diagnosis of hemophagocytic syndrome: underlying disorders and selection of de most effective treatment. Int J Hematol 1997;66(2):135-51.         [ Links ]
18. Tsuda H. Hemophagocytic syndrome (HPS) in children and adults. Int J Hematol 1997;65(3):215-26.         [ Links ]
19. Papo T, André MH, Amoura Z, Lortholary O, Tribout B, Guillevin L et al. The spectrum of reactive hemophagocytic syndrome in systemic lupus erythematosus. J Rheumatol 1999;26(4):927-30.         [ Links ]


 Correspondência para:
Marco Antonio Cuellar Arnez
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. Universidade Federal do Rio de Janeiro
Av. Prof. Rodolpho Paulo Rocco, 255 - Cidade Universitária - Ilha do Fundão
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP: 21941-913
E-mail: marcoarnez@hotmail.com

Recebido em 14/04/2011
Aprovado, após revisão, em 27/06/2012
Os autores declaram a inexistência de conflito de interesse.



Serviço de Reumatologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Universidade Federal do Rio de Janeiro - HUCFF-UFRJ.

Comentários